O Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) — a ADI 7.686, proposta pelo PSOL, e a ADI 4.245, ajuizada pelo União Brasil — que discutiam a aplicação da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças no país.
Firmada em 1980, a Convenção de Haia tem como objetivo central a proteção de crianças frente ao sequestro internacional praticado por um dos genitores, assegurando o seu retorno imediato ao país de residência habitual, salvo em situações excepcionais, tais como: a integração da criança ao novo meio; o consentimento posterior ou não exercício efetivo do direito de guarda pelo responsável que permaneceu no país de residência habitual; grave risco à criança ou adolescente; quando há sua manifestação expressa em relação ao não retorno; e a incompatibilidade com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
A lógica da convenção é restaurar o status quo anterior à retirada indevida, desencorajando deslocamentos unilaterais e prevenindo disputas internacionais sobre guarda.
Na ADI 7.686, questionava-se a possibilidade de retorno automático de crianças e adolescentes ao país de origem, sem análise do risco de violência, inclusive nos casos em que a vítima não fosse a criança diretamente, mas sua mãe ou responsável. Já a ADI 4.245 atacava a própria ratificação da convenção, sob alegação de que o tratado afrontaria princípios constitucionais ao relativizar o melhor interesse da criança.
O debate ganhou destaque após casos de repercussão, como o de Raquel Cantarelli, mãe brasileira que deixou a Irlanda sob alegação de suportar violência doméstica. Apesar das alegações de risco, a Justiça determinou o retorno das filhas ao exterior, decisão que gerou forte comoção e críticas.
O dilema a ser enfrentado pelo STF era claro: de um lado, a necessidade de coibir o sequestro internacional de crianças e resguardar a convivência no país de residência habitual; de outro, a obrigação de evitar que a aplicação automática do tratado desconsidere contextos de violência doméstica e situações de risco real para mães e filhos.
No último mês de agosto, por maioria, a Corte firmou tese no sentido de que a violência doméstica constitui exceção legítima para impedir a repatriação de crianças, mesmo quando a agressão atinge apenas a mãe e a criança não seja testemunha direta dos fatos.
A decisão, relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso, afastou a aplicação automática da convenção e reforçou que sua validade no Brasil está condicionada ao respeito à Constituição Federal. Isso significa que a devolução só poderá ser determinada com a observância de garantias como contraditório, ampla defesa e análise individualizada dos riscos concretos.
O STF ainda determinou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que constitua grupo de trabalho interinstitucional para elaborar normas que agilizem a tramitação dos processos de restituição internacional de crianças, garantindo-se o contraditório e com determinação de prazo para decisão.
Assim, o STF preservou a Convenção de Haia no ordenamento jurídico brasileiro, mas também a reinterpretou, à luz do princípio do melhor interesse da criança, sem esquecer da observância de maior proteção às vítimas de violência doméstica.”